O olhar masculino no cinema narrativo clássico
(Análise dos filmes "A dama de Xangai" e "Vênus Loura" com base nos escritos de Laura Mulvey e Ann Kaplan)
(Análise dos filmes "A dama de Xangai" e "Vênus Loura" com base nos escritos de Laura Mulvey e Ann Kaplan)
Há três tipos de olhares presentes no cinema narrativo clássico. Olhares que trazem à evidência a dominação do feminino pelo masculino mas que também mostram formas de ruptura com o patriarcalismo. Analisamos esses olhares com base nos filmes Vênus Loura (1932), de Von Sternberg, e A dama de Xangai (1946), de Orson Welles, e no artigo de Laura Mulvey Prazer Visual e Cinema narrativo e de Ann Kapplan, A mulher e o cinema – os dois lados da câmera.
Segundo Laura Mulvey, existem três tipos de olhares no cinema narrativo clássico, que são explicitamente masculinos: (1) o olhar da câmera, (2) o olhar do telespectador e (3) o olhar dos protagonistas masculinos no filme. Entretanto, “as convenções do filme narrativo”, segundo a autora, “rejeitam os dois primeiros sujeitando-os ao terceiro, com o objetivo consciente de eliminar a presença da câmera intrusa e impedir que a platéia tenha consciência crítica do drama ficcional”. Pois a consciência do processo de registro do filme e a leitura crítica do telespectador podem tirar o realismo e a verdade do filme.
Essa situação contribui para que o espectador tenha seus desejos reprimidos temporariamente e projetados no ator, numa situação parecida com a fase do espelho descrita por Lacan, em que a imagem-espelho torna-se mais perfeita que a própria pessoa. “O personagem na história pode fazer com que as coisas aconteçam e pode controlar os eventos bem melhor do que o sujeito/espectador, da mesma forma em que a imagem no espelho exibia um maior controle da coordenação motora”, destaca Mulvey. Assim, pelo processo de identificação, quando o protagonista toma posse do seu objeto erótico, a mulher, o espectador também pode, indiretamente, possuí-la.
Apesar de a presença feminina ser um elemento indispensável no espetáculo do filme, ela tende a congelar o fluxo da ação em momentos de contemplação erótica, o desenvolvimento da diegese do filme é paralisado para a contemplação da beleza feminina. Essa situação pode ser vista na famosa cena do vodu, do filme Vênus Loura, onde a narrativa é paralisada para o vislumbramento de Helen, interpretada pela diva Marlene Dietrich. Ali pode-se ver claramente os três olhares citados por Mulvey: o dos homens da cena, hipnotizados pela beleza de Helen, o da câmera que escolhe os melhores ângulos para realçar a sensualidade da atriz e, por último, o do telespectador, que entra no jogo fílmico como o receptor do erotismo provocado pela sensualidade da mulher em cena.
Mas o problema dessa intensa masculinização do olhar no cinema clássico de Hollywood é o da manutenção do status quo da mulher na sociedade patriarcal, quando ela é vista como mero objeto erótico tanto para os personagens da tela como para o espectador do cinema. Para Ann Kaplan, o homem não olha simplesmente, mas em seu olhar está contido o poder de ação e de posse que faltam ao olhar feminino. Segundo ela, a mulher recebe e retorna o olhar, mas não tem poder de ação sobre ele. Ela ressalta também que essa sexualização e objetificação da mulher não tem apenas o erotismo como objetivo, mas também é uma tentativa de aniquilar a ameaça que a mulher representa.
Fazendo uso de termos psicanalíticos como escopofilia, falocentrismo, voyeurismo e fetichismo, Mulvey explica que a figura feminina coloca um problema mais profundo, como objeto do olhar masculino. A falta real de um pênis implica ao homem um desprazer, pela ameaça de castração e também, conforme Ann Kaplan, pelo medo do “órgão sinistro”, que é a vagina. Mulvey identifica duas vias de saída para o homem escapar desta ansiedade de castração: o (1) voyeurismo e o (2) fetichismo, estruturas utilizadas como uma espécie de mecanismo de defesa contra a ameaça feminina.
Com o uso do voyeurismo, o qual possui associações com o sadismo, o homem encontra o prazer na determinação da culpa da mulher-objeto, controlando-a e submetendo-a à desvalorização, punição ou redenção. Em A dama de Xangai, pode ser vista a punição que O’Hara dá a Elza Bannister no final do filme, ao deixá-la morrer em um momento em que poderia salvá-la. Ela teria que pagar por tê-lo seduzido e o desviado do “caminho correto”. Já em Vênus Loura, pode ser visto o voyeurismo na forma da redenção ou perdão, quando Helen é aceita de volta pelo seu marido, agora não mais como a mulher sensual, perigosa e sedutora, mas como a mãe do filho de Faraday.
Já com o uso do fetichismo escopofílico, pode ser vista uma completa rejeição da castração pela substituição da mulher por um objeto fetiche, de forma a torná-la mais tranquilizadora em vez de perigosa. É o caso da cena em que Helen apresenta um espetáculo em Paris com trajes masculinos, tornando possível sua aceitação pela platéia masculina. Kaplan salienta que essa cena produz efeitos contraditórios, e o feitiço pode se voltar contra o feiticeiro, pois, se por um lado a imagem conota a masculinização de Helen (tornando a imagem da mulher mais resistente), por outro lado permite uma ligação subversora fêmea-fêmea (ao permitir uma forma de relacionamento sexual que exclui o homem). Interessante perceber que, ao vestir-se em um papel masculinizado, Helen perde um pouco a feminilidade e carrega consigo, em contraposição, a imagem de ser uma pessoa fria, ambiciosa, enérgica, manipuladora e insensível.
Sobre a predominância do olhar masculino no cinema narrativo clássico, Ann Kaplan conclui que nossa cultura está profundamente comprometida com os mitos das diferenças sexuais masculino/feminino, que primeiro giram em torno do olhar e em seguida de modelos domínio-submissão. “Tais posicionamentos assumidos pelos dois gêneros sexuais na representação privilegiam nitidamente o macho, através dos mecanismos de voyeurismo e fetichismo, que são operações masculinas e porque o seu desejo detém o poder/ação enquanto o da mulher não”. Entretanto, cabe notar que, conforme essa autora, o olhar não é necessariamente masculino, mas que, para possuir e ativar o olhar é necessário que se esteja na posição “masculina”. É o caso citado acima em que Helen toma postura masculina no episódio do espetáculo em Paris.
Outra função do fetichismo é a repressão da maternidade. Várias teóricas femininas sugeriram voltarmos às relações básicas de mãe e filho para descobrir porque o feminino e a maternidade foram reprimidos. Kaplan cita alguns motivos como o do filho homem não conseguir se recuperar do fato de ter sido cuidado e ter dependido de uma figura castrada e com um órgão “sinistro” e a consciência de que seu pequeno órgão genital nunca poderia satisfazer a mãe. Logo, a ausência da mulher no patriarcado como sujeito pode ser vista como conseqüência da necessidade de reprimir a maternidade e as seqüelas deixadas na memória masculina. Em A dama de Xangai a maternidade é totalmente ausente, em nenhum momento Elsa e Bannister tocam no assunto de ter o não um filho. Já em Venus Loura, a necessidade de punição da mulher é tão grande que não lhe é permitido ser mãe e ter uma vida sexualmente ativa e livre. No retorno “ao seu lugar correto”, Helen é novamente inserida na família e o filme enfatiza a falta que a mulher faz no lar, de onde não deveria nunca ter saído. Quando ele reencontra seu filho, mais que rapidamente começa a colocar as coisas em ordem, como o banho que ela lhe dá e a musica que canta para ele dormir.
Assim, vemos que o trabalho de Laura Mulvey tem o objetivo justamente de contestar e tentar uma ruptura com essa forma estruturada do cinema narrativo clássico, contestando esses olhares e a forma em que a mulher foi utilizada para fins egoístas de prazer masculino, o que segundo ela só trouxe sofrimento e dor. Ela propõe fazer uso dos próprios instrumentos psicanalíticos do patriarcado para a destruição dessa forma de prazer. A proposta de Mulvey, assim como de Ann Kaplan e outras cineastas, é libertar o olhar da câmera e o da plateia, “um afastamento apaixonado”, com o fim de destruir esse prazer que foi historicamente baseado na reificação da mulher. “Não há dúvidas de que isto destrói a satisfação, o prazer e o privilégio do “convidado invisível”, e ilumina o fato do quanto o cinema dependeu dos mecanismos voyeuristas ativo/passivo”.
Mulvey fala da possibilidade de um cinema alternativo, chamado também contracinema, que deve começar reagindo contra as obsessões psíquicas da sociedade que produziu os filmes clássicos de Hollywood, e codificou o erótico dentro da linguagem patriarcal dominante. Ela fala de uma nova linguagem do desejo, que transcende as formas já desgastadas ou opressivas existentes. Ela cita alguns filmes que começaram a mudar esse modelo, como o filme Os embalos de sábado a noite e O cowboy do asfalto, que traz a figura masculina na posição de objeto para o desejo sexual da mulher, que controla a ação do filme.
Mas Ann Kaplan faz uma ressalva sobre essa noção de contracinema de Laura Mulvey, por se esbarrar na questão do prazer. Kaplan aponta os estudos de Arbuthnot e Seneca sobre o prazer, que chegaram à conclusão de que a posição feminina “para ser olhada”, como objeto do olhar (masculino), passou a ser sexualmente prazerosa, apesar da desconfiança em até que ponto o prazer proveniente do filme hollywoodiano advém da identificação com a objetificação. Mas após a compreensão das formas pelas quais os mitos patriarcais funcionam para situar a mulher como silenciosa, ausente e marginal, torna-se necessário, conforme Kaplan, pensar em estratégias para mudar o discurso, “já que tais mudanças vão, em contrapartida, afetar a estruturação de nossas vidas na sociedade”.
Ann Kaplan conclui que devemos pensar nos meios de transcender a polaridade macho/fêmea, ativo/passivo, dominador/submisso, patriarcal/matriarcal que só trouxe sofrimento; ja Laura Mulvey conclui seu trabalho com bastante otimismo quanto à decadência da forma tradicional de cinema. Segundo ela, as mulheres assistem a esse declínio com um simples e sentimental “lamentamos muito”.
Lídia Cunha
Referências bibliográficas
MULVEY, Laura. Prazer Visual e Cinema Narrativo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
KAPLAN. E. Ann. A mulher e o cinema - Os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
WELLES, Orson. A dama de Xangai. 1946
STERNBERG, Von. Venus Loura. 1932
Olá Lídia,
ResponderExcluirmuito interessante seu texto, já tinha lido esse artigo da Laura Mulvey mas a forma como vc a apresenta fica mais fácil de entender. Não sou da área de comunicação, curso bacharelado em humanidades e estou escrevendo meu TCC sobre a imagem da múlher negra nas propagandas, porém estou com dificuldades para encontrar textos que falem sobre semiótica e análise pscanalítica (como Mulvey faz) que sejam mais sucintos e tenham uma linguagem acessível. Se puder me ajudar com alguma bibliografia ou locais na internet que tem textos sobre o assunto (estudo numa federal no interior da Bahia, então basicamente toda a minha referência vem da internet).
Bom dia, respondi no seu e-mail.
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ResponderExcluirAbs
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