segunda-feira, 16 de julho de 2012



Resenha do filme "Cronicamente Inviável", de Sérgio Bianchi

Cronicamente inviável é um filme brasileiro que muito se assemelha a um documentário, pois mostra um retrato da desigualdade social no Brasil. Seis atores principais encarnam diferentes estereótipos do povo brasileiro: Adam (Dan Stulbach), um sulista de origem polonesa, que vai trabalhar como garçom no restaurante principal do filme. Luiz (Cecil Thire), o dono do restaurante, o típico homem culto e “civilizado”; Amanda (Dira Paes), gerente do restaurante, de origem pobre, uma pessoa que se deu bem na vida, mas se esquece da sua origem humilde preferindo viver e agir como uma burguesa. Maria Alice (Betty Gofman), mulher de classe média alta que se mostra preocupada com as injustiças sociais. Carlos (Daniel Dantas), marido de Maria Alice, um economista que acredita nos valores do capitalismo e tem plena consciência das desigualdades sociais, e contribui para a manutenção do status quo. Alfredo (Umberto Magnani), um pesquisador que viaja pelo Brasil em busca de uma explicação para os problemas sociais.
É através do personagem Alfredo que o filme nos leva a uma viagem aterrorizadora pela realidade social de várias regiões do país, como a Bahia, São Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Amazonas, onde a sujeira é um traço marcante, em todos os sentidos, a sujeira da casa de Maria Alice, que a empregada negra limpa todos os dias; a casa da empregada que é suja porque ela não tem tempo de limpar; a sujeira de lixo na rua, dos lixos que os mendigos e os cachorros comem; a sujeira de urina que as pessoas fazem na rua, a sujeira das miseráveis relações inter-pessoais, a sujeira do preconceito, a sujeira da política.
No começo do filme, vê-se uma cena na cozinha do restaurante, onde um cozinheiro separa os restos de carne dos demais restos de comida. Metaforicamente, percebe-se que assim como os brasileiros os alimentos também são tratados de maneira desigual.
Em quase todas as cenas também está presente o dualismo citado por Custódia Selma Sena em Interpretações dualistas do Brasil, o rico e o pobre, a casa e a rua, sertão/litoral, primitivo/civilizado. Em uma das primeiras cenas, em um jantar no restaurante do Luís, com a gerente Amanda, Carlos e Maria Alice, esta comenta que não suporta a injustiça social no país, ver tantas crianças drogadas espalhadas pelas ruas de São Paulo. Ela diz que é o prazer de muitos colocar a injustiça social como uma característica cultural do Brasil. Ironicamente, Ivan responde que isso também vai acabar gerando orgulho, como tudo que é exclusivamente nacional, futebol, café, mulata.
Em outra cena, em que um caminhão de pessoas do movimento dos Sem-Terra estaciona em uma fazenda para invadi-la, torna-se perceptível o conceito de pessoa e de indivíduo proposto por Roberto DaMatta em O que faz do brasil, Brasil? Quando o grupo chega ao local, um dos dirigentes diz que estão na fazenda errada e pede para todos voltarem ao caminhão, pois a fazenda é do “Siqueira”. Vê-se aí uma manifestação do paradoxo pessoa/indivíduo. Enquanto o indivíduo é o sujeito das leis universais, a pessoa é sujeito das relações sociais e hierarquizantes. O indivíduo é para quem as leis são feitas, é o anônimo, um fazendeiro qualquer, em detrimento do fazendeiro Siqueira, sujeito inserido em um sistema de relações pessoais, de compadrio e troca de favores.
Já com relação às comemorações festivas do Brasil, o filme mostra a conformidade dos cidadãos com seu status quo nas festas de Axé da Bahia. Ai outra vez se vê o dualismo brasileiro, de um lado os que compraram um lugar mais privilegiado da festa, mais próximo do trio elétrico, estes se distinguem pelas camisetas do abadá; de outro os que não tiveram dinheiro para comprar o abadá e se conformam em festejar mais à distância das bandas de axé e sem a dita camiseta.
Mais adiante, o filme mostra uma festa de carnaval, em que a empregada de Maria Alice, Josilene, negra, que tem um passado comum com a patroa (ambas perpetuam as posições sociais de suas mães: patroa/empregada), se vê na oportunidade de inventar e trocar de posição, como bem destacou DaMatta. “O carnaval é a possibilidade utópica de mudar de lugar, de trocar de posição na estrutura social”. (DaMatta, pág. 78). Nesta cena, o pesquisador-narrador diz: “A esperança de ser um dia senhor, faz com que seja suportável a dominação”, referindo-se aos poucos momentos de glória da empregada na pista de carnaval.
O jeitinho brasileiro que DaMatta destaca como uma das principais características do país tem uma ligação com a malandragem, com o trambique. Em uma cena em que Luis está com sua esposa no carro, ele diz que no Brasil todo mundo é trambiqueiro e quem não é morre de fome. Ele diz: “Eu não tenho culpa se as leis foram feitas para institucionalizar o trambique”.
Diversas outras cenas são bem marcantes, como a que dois mendigos vão comer os restos de comida na lixeira do restaurante; a cena de exploração do trabalho infantil nas minas de carvão; o preconceito racial no restaurante; a exploração da mão de obra indígena, o crack e as crianças de rua, a prostituição do garçom com seu patrão, a insignificância do atropelamento de uma criança de rua. Enfim, de uma forma bem dinâmica e abrangente, Sérgio Bianchi toca nos principais problemas sociais do nosso pais.
Em uma das cenas finais, o pesquisador Alfredo chega à conclusão de que as pessoas vão interpretando todas essas coisas como ficção, e que não adianta mostrar-lhes a realidade. “Melhor registrar os fatos, nada mais. A interpretação fica para depois”.
Por último, o cineasta Sérgio Bianchi ironiza o papel das religiões, ao mostrar como cena final uma mãe moradora de rua fazendo carinho no seu filho enquanto lhe recita o Salmo 23, dizendo que seu orgulho é ser pobre, porque no coração é rica por ter um filho maravilhoso.

Lídia Cunha

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